sábado, março 04, 2006

    Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
    Tinha não sei qual guerra,
    Quando a invasão ardia na Cidade
    E as mulheres gritavam,
    Dois jogadores de xadrez jogavam
    O seu jogo contínuo.

    À sombra de ampla árvore fitavam
    O tabuleiro antigo,
    E, ao lado de cada um, esperando os seus
    Momentos mais folgados,
    Quando havia movido a pedra, e agora
    Esperava o adversário.
    Um púcaro com vinho refrescava
    Sobriamente a sua sede.

    Ardiam casas, saqueadas eram
    As arcas e as paredes,
    Violadas, as mulheres eram postas
    Contra os muros caídos,
    Traspassadas de lanças, as crianças
    Eram sangue nas ruas...
    Mas onde estavam, perto da cidade,
    E longe do seu ruído,
    Os jogadores de xadrez jogavam
    O jogo de xadrez.

    Inda que nas mensagens do ermo vento
    Lhes viessem os gritos,
    E, ao refletir, soubessem desde a alma
    Que por certo as mulheres
    E as tenras filhas violadas eram
    Nessa distância próxima,
    Inda que, no momento que o pensavam,
    Uma sombra ligeira
    Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
    Breve seus olhos calmos
    Volviam sua atenta confiança
    Ao tabuleiro velho.

    Quando o rei de marfim está em perigo,
    Que importa a carne e o osso
    Das irmãs e das mães e das crianças?
    Quando a torre não cobre
    A retirada da rainha branca,
    O saque pouco importa.
    E quando a mão confiada leva o xeque
    Ao rei do adversário,
    Pouco pesa na alma que lá longe
    Estejam morrendo filhos.

    Mesmo que, de repente, sobre o muro
    Surja a sanhuda face
    Dum guerreiro invasor, e breve deva
    Em sangue ali cair
    O jogador solene de xadrez,
    O momento antes desse
    (É ainda dado ao cálculo dum lance
    Pra a efeito horas depois)
    É ainda entregue ao jogo predileto
    Dos grandes indif'rentes.

    Caiam cidades, sofram povos, cesse
    A liberdade e a vida.
    Os haveres tranqüilos e avitos
    Ardem e que se arranquem,
    Mas quando a guerra os jogos interrompa,
    Esteja o rei sem xeque,
    E o de marfim peão mais avançado
    Pronto a comprar a torre.

    Meus irmãos em amarmos Epicuro
    E o entendermos mais
    De acordo com nós-próprios que com ele,
    Aprendamos na história
    Dos calmos jogadores de xadrez
    Como passar a vida.

    Tudo o que é sério pouco nos importe,
    O grave pouco pese,
    O natural impulso dos instintos
    Que ceda ao inútil gozo
    (Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
    De jogar um bom jogo.

    O que levamos desta vida inútil
    Tanto vale se é
    A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
    Como se fosse apenas
    A memória de um jogo bem jogado
    E uma partida ganha
    A um jogador melhor.

    A glória pesa como um fardo rico,
    A fama como a febre,
    O amor cansa, porque é a sério e busca,
    A ciência nunca encontra,
    E a vida passa e dói porque o conhece...
    O jogo do xadrez
    Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
    Pesa, pois não é nada.

    Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
    Com um púcaro de vinho
    Ao lado, e atentos só à inútil faina
    Do jogo do xadrez
    Mesmo que o jogo seja apenas sonho
    E não haja parceiro,
    Imitemos os persas desta história,
    E, enquanto lá fora,
    Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
    Chamam por nós, deixemos
    Que em vão nos chamem, cada um de nós
    Sob as sombras amigas
    Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
    A sua indiferença.

    Ricardo Reis, 1-6-1916

2 Comments:

At domingo, março 05, 2006 1:38:00 da manhã, Blogger Carlos Sirgado said...

Transcrevemos a 5ª e a 11ª estrofe desta ode, na brochura do IV Torneio Internacional de Xadrez do GCOdivelas (18/03/2001).

O Fernando Pessoa / Ricardo Reis / Alberto Caeiro / Álvaro de Campos / ..., devia ser um tipo curtido.
Eu bem lhe disse para não abusar no absinto...

 
At domingo, março 05, 2006 3:10:00 da manhã, Blogger José Pinheiro said...

Como jogador de xadrez acho este poema extraordinário e pleno de actualidade .
Mais do que nunca o Xadrez e outras actividades não essenciais , são utilizadas como escapismo e alienação sobre a realidade .
O que importa o que se passa à nossa volta quando se pratica o jogo dos " grandes indiferentes" ? Ou por outro lado será que um hipotético ( ou genuíno ) interesse sobre o que nos rodeia e que se traduz em algum conhecimento mas zero chance de intervenção , é a última forma de alienação ?

Fernando Pessoa não apresenta respostas , Baco queda-se mudo , tentei ler as folhas de chá , mas só tinha saquinhos ...

É a vidinha ...

 

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